A razão humana, essa centelha luminosa que tanto nos envaidece, não raro se engana quanto à sua própria extensão. Desde os tempos modernos, sobretudo após o advento do Iluminismo, ela foi alçada à condição de árbitra suprema da verdade, julgando todos os temas — inclusive os que a transcendem — como se fosse juíza onisciente do cosmos. Mas será a razão capaz de fundamentar a si mesma sem apelar para algo que a ultrapasse? Eis a inquietação que deve inaugurar todo pensamento verdadeiramente filosófico.
Kant, em sua Crítica da Razão Pura, alertou-nos para um erro recorrente: a razão, quando se aventura além do domínio da experiência possível, tropeça em antinomias, conflitos internos e ilusões transcendentes. Quando tenta provar a existência de Deus, a liberdade ou a imortalidade da alma por seus próprios meios, ela não apenas falha — ela se contradiz. A razão pura, quando desmedida, torna-se imprudente. Seu brilho se apaga quando pretende iluminar o que apenas pode ser intuído pela razão prática ou pela fé.
Portanto, antes de contrapor fé e razão, é necessário pôr a razão em seu devido lugar. Não como serva da fé, nem como sua senhora, mas como companheira humilde. A razão que conhece seus próprios limites é mais sábia do que a que pretende tudo explicar. Crer, nesse sentido, não é renunciar à razão, mas libertá-la de sua própria arrogância. E é apenas essa razão crítica — e não a razão dogmática — que pode dialogar com a fé sem desfigurá-la.
Vivemos num tempo em que muitos veem fé e razão como inimigas. Uma seria cega, a outra, fria. Mas essa oposição sempre existiu? Será que a fé precisa renunciar à razão para ser verdadeira? Ou será que a razão, quando profunda, encontra-se com a fé?
Na tradição cristã medieval, especialmente em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, a razão é vista como caminho que prepara a alma para a fé. Tomás dizia: “A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa.” Ou seja, crer não é fugir da razão, mas levá-la ao seu cume.
Com a ascensão do pensamento iluminista, a fé passou a ser vista como um atraso. Voltaire, Hume e outros pensadores viam a religião como superstição organizada. Mas será que a razão moderna explicou tudo? As perguntas últimas – sobre o sentido, a origem e o destino – continuam abertas.
A fé não é irracional, mas trans-racional. Como o amor ou a arte, ela toca aspectos da realidade que a pura lógica não alcança. A teologia de Joseph Ratzinger (Bento XVI) reafirma que “crer é também pensar”. A fé que teme a razão revela fraqueza; a razão que recusa a fé revela orgulho.
A fé pode — e deve — dialogar com a razão. Como duas asas, ambas nos elevam à verdade. Uma razão sem fé se torna fria e niilista; uma fé sem razão, fanática e frágil. Que voemos com ambas, confiantes de que a verdade não teme ser questionada.
Até o próximo, caro leitor. Que a razão te acompanhe — mas que a fé a conduza.
Esse é o ponto: “A fé que teme a razão revela fraqueza; a razão que recusa a fé revela orgulho.”
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